18.11.07

labirinto – ideias escuras sobre o novo barroco de isabel padrão


a pintura portuguesa encontra em isabel padrão a sua mais competente e valiosa seguidora de um novo barroco, capaz de completar uma tela com uma miríade de elementos tal que, sem dúvida, a primeira sensação criada no seu espectador passa pela ocupação urgente do espaço; uma mediação das formas entre si, como se caber no quadro adviesse de uma digladiação entre os egos dos diversos elementos.
a ocupação aturada do espaço da tela é, contudo, e ao contrário do que à primeira vista nos possa parecer, algo ordenada, na sua base obedecendo a uma interposição ou sobreposição de padronizações que se limitam umas às outras mas que não se anulam. quer isto dizer que, embora complexas, as composições de isabel padrão não se motivam pelo caos, antes pela sua insinuação, uma vez que, nos seus detalhes tudo se mantém perfeito e até indiciador de equilíbrio. poderíamos considerar que não tende para o caos mas vem dele, como se encontrasse um caminho para o tornar legível, habitável, profundamente estético.
o processo de isabel padrão afina-se por um efeito de colagem que opera pela sobreposição sucessiva dos elementos. existe um plano de fundo, já de si fragmentário, vário e suficientemente exuberante pelas suas cores e complicadas formas, ao qual se apõem novas referências. o que se sobrepõe, ainda assim, estando em evidência, não impede que, muitas das vezes, o fundo ressalte. para isso, a pintora utiliza amiúde o preto e branco nas figuras de primeiro plano, que não competem, simplesmente se colam sobre o jogo prévio. os quadros de isabel padrão são, em grande medida, a criação de tabuleiros delirantes onde as peças se colocam fora de casas, porque nada está absolutamente certo e nada está errado na composição resultante. são tabuleiros conseguidos por inteligentes relações entre estranhos, transformando o retalho de cada padrão num participante sempre importante, nunca menosprezando o mais ínfimo pormenor.
numa fórmula gráfica inteligente, que alia a contemporaneidade com o imaginário de outras épocas, a pintora cria um universo que mescla o efusivo dos planos de fundo com a austeridade e solenidade dos items apostos sobre eles. o uso destes elementos em preto e branco, com alusões quase sempre relativas a um mundo místico, funciona como imagens vistas em vórtices oníricos. há qualquer coisa daquelas velozes visões dos sonhos, nas quais se abrem espirais de cores onde alguns rostos e objectos se destacam com uma importância tantas vezes desconhecida para nós. perante as telas de isabel padrão podemos experimentar essa sensação bizarra de se ter cortado o tempo e, numa voraz torrente de luz, como um caleidoscópio que se acende intenso, algumas figuras se mostram como percepções espirituais ou manifestações do subconsciente. figuras que se relacionam só assim, por essa conexão insondável do sonho, acima das lógicas tão limitadas da razão.
é curioso que o resultado final das obras tenha que ver com um certo misticismo e até espiritualidade, porque em verdade o que acontece é a utilização do pendor decorativo dessas referências que acabam por impor ao quadro um tom desmistificador. se é notório o fascínio da pintora pelo imaginário mitológico e religioso, também é certo que a ele deita mão numa liberdade tal que o instrumentaliza, esvaziando-o do seu teor sagrado para o preferir pela directa vantagem estética. a perseguição de uma beleza gráfica, irónica e até sarcástica, é feita dessa vontade de transgredir perante os preconceitos erigidos sobre determinadas figuras ou assuntos para expor tudo pela sua natureza formal, despido de crenças ou qualquer espiritualização. neste trabalho, a morte, a medusa ou o anjo, bem como os símbolos cabalísticos, são meramente formais, como se participassem feridos na sua força simbólica. são símbolos, e como tal não poderão nunca esquecer o que representam, mas jogam nestes tabuleiros como outros objectos colocados num universo autónomo. não parece haver uma vontade de chocar pela facilidade, agredindo o que as figuras representam, existe antes um fascínio pelo que são enquanto metáforas dos anseios humanos. a transgressão que isabel padrão pode levar a cabo não pretende nunca tornar-se agressiva ou violenta por si só, é antes uma manifestação de liberdade que reclama o direito de despir todas as coisas do seu suposto carácter inviolável.
este facto de a aparente aspereza das composições de isabel padrão não ser consumada, revelando antes um contexto puramente humano e delicado, também é ajudado pelo lirismo que domina todo o trabalho. existe uma poeticidade grande de todas as telas, encontrada no romantismo de muitas figuras e na feminilidade acentuada das cores e padrões, remetendo inegavelmente para os papeis de parede mas, também, para os tecidos meticulosamente bordados, trazendo discretamente tudo quanto acontece para cima de mesas requintadas ou colchas de luxo. esta perspectiva de que os tais tabuleiros podem ser elaborados com fragmentos de tecidos cuidados, torna a pintura profundamente mais feminina e, ab initio, assumindo uma grande sensibilidade.
a pintura de isabel padrão é labiríntica, profundamente subjectiva, mais ainda por esse efeito claro de preferir as referências que usa pelo seu lado formal mais do que simbólico, o que torna tudo uma questão pessoal, como se entrássemos na cabeça de alguém e, obviamente, deparássemos com o seu complexo modo de funcionamento, muito para além daquilo a que estamos habituados a perscrutar ou até pressupor. é, pela sua força própria e genuína intensidade, uma revelação de carácter, levando a um dos mais demarcados estilos da pintura portuguesa recente. para uma determinada escola portuense, isabel padrão poderá ser um dos seus nomes cimeiros, autora de uma das obras mais fracturantes e, ao mesmo tempo, capazes de elogiar o passado; capaz, no fundo, de ser quem é enquanto autora e dotar a sua arte da estrepitosa diferença justificada por uma opção barroca incrivelmente honesta; uma opção, insisto, na génese de uma das obras mais valiosas da sua geração em portugal

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