21.12.04

nove livros de poesia

«a alegria do mal», josé emílio-nelson, quasi edições

Domingo no bairro

Passeia perto de casa o cão.
Encontro-o há anos no parque.
Num canteiro
Talvez culpa das rosas
O ar é todo urina.

a poesia de josé emílio-nelson é visceral, feita do escatológico e do repúdio por quanto possa convencionar-se. interessa-me a fúria da necessidade que sente em destruir, assumidamente, a segurançazinha das donzelas recatadas.

«ardem as perdas», antonio gamoneda, tradução de jorge melícias, quasi edições
Havia flores queimadas, cotim
sobre a máquina que chora.
Azeite e pranto no aço e
hélices e números sangrentos
na pureza da ira.

gamoneda é o poeta das contenções, primordial e austero como um profeta severo. maravilhoso.

«fibrilações», ana hatherly, quimera
Meu coração e eu
vivemos juntos
mas não lado a lado
e nunca nos vemos
O sangue é um acordo vivo
que nos ata

sabedorias de uma das grandes senhoras da poesia experimental portuguesa. pequenos textos com a intensidade dos haikai. um livro lindo de quem já teve muito da poesia e agora só aceita o melhor.

«incubus», jorge melícias, quasi edçiões

Consideremos o crime:
o modo como a navalha dele extrai
a própria mutação.
Porque todo o objecto aspira
a exceder a sua exactidão. A devir.

neste livro jorge melícias parte para o princípio das coisas através do crime. o crime como elemento motor, ponto de arranque para a humanidade das leis, que é como quem diz, no universo de melícias, para a máquina meticulosa que rege todas as acções, toda a percepção e tudo quanto lhe escapa – que é tudo quanto nos escapa.

«não me morras», eduarda chiote

Hoje possuí-te o corpo
que te havia
abandonado. Estavas branco,
acabado de morrer
cegamente.
Só a mim cabia o cobrir-te a nudez
com a toalha de banho
ou o abandonar-te
no quarto do hotel,
chamando o porteiro de
urgência.
Ainda há pouco,
tomado de contracções, o teu pénis enrijecera,
e, para meu espanto,
ejaculara sozinho
e atónito.
(…)

poderosa a poesia de eduarda chiote. desabrida e sensível, como se a emoção e o sentimento fossem bichos para serem mostrados com inteligência. uma poesia de sabor a experiência. uma lição de vidas, duras e ávidas de uma beleza qualquer.

«nenhum nome depois», maria do rosário pedreira, gótica

Nunca soube o teu nome. Entraste numa tarde,
por engano, a perguntar se eu era outra pessoa –
um sol que de repente acrescentava cal aos muros,
um incêndio capaz de devorar o coração do mundo.
(…)

a poesia de maria do rosário pedreira é perfume delicado entre toda quanto se faz e fez. a sua voz é feminina e sofrida, mas nem por isso trémula. é uma voz decidida, como se de alguém decidido, sem concessões, a amar além dos limites, vida e morte incluídas. neste livro, por todos os lados, a poeta dá nome às pessoas que tem, que perdeu ou nunca teve.

«poesia escolhida», eduardo pitta, círculo de leitores

A vida é uma ferida?
O coração lateja?
O sangue é uma parede cega?
E se tudo, de repente?


eduardo pitta é um poeta de produção rara. a selecção de alguns dos seus poemas neste livro tem de ser celebrada pela oportunidade de os reler, mas também por se acompanharem de um pequeno conjunto de inéditos. pitta é poeta de coisas decisivas, como fatalidades ou espontâneas e ancestrais sabedorias. escolhi um poema que joga com a hipótese, nem sempre frequente na sua obra, ainda assim belíssimo.

«satanás diz», sharon olds, tradução de margarida vale de gato, antígona

Desejei ser a primeira a fazer pontaria com a faca,
desejei usar os meus braços extraordinariamente robustos e certeiros
e a minha postura erecta e os músculos ágeis e eléctricos
para alcançar algo no centro da multidão,
o fio da navalha perfurando profundamente o casco,
o punho vibrando lento e pesado como o caralho.
Desejei uma função épica para o meu excelente corpo,
um qualquer heroísmo, uma qualquer proeza americana
para além do ordinário para a minha pessoa extraordinária,
magnética e tênsil, junto ao campo de terra batidavi os rapazes jogarem.
(…)

graças a deus pela margarida vale de gato que, em boa hora, decidiu traduzir sharon olds. este livro apresenta a autora ao público português, e fá-lo pelo melhor. é um livro premiado, mas espantosamente – como tudo o que olds escreve – sem concessões. as «histórias» destes poemas são de deixar cabelo em pé. coisa de mulher com tomates.

«o tempo mais puro», isabel coelho dos santos, cosmorama

junto às mãos todos os rios, é imparável
a força das correntes, a manhã
infiltrando-se pura nos abismos
dizer-te: é desta matériao tempo mais puro
um livro de estreia onde as leituras mais densas já se notam. de idade espantosamente jovem, isabel coelho dos santos é uma poeta inteligente e criativa, capaz de criar as imagens mais subtis e emotivas a partir de uma metaforização esplendorosa

2 comentários:

  1. Bom, livros há muitos... leitores precisam-se... de qq maneira, só passei para desejar um Bom Natal e que 2005 te seja tão inspirador como o foi este ano :)

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  2. E não é que este se está tornando um "blog de estimação"?
    Assim mo permita o autor e não se amire de muitas visitas! :D

    Belíssimas pistas de leitura que pretendo, nalguns casos, seguir.
    Muitissíssimo obrigada. :)

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